«Isidore Lucien Ducasse nasceu em Montevideu, no Uruguai, a 4 de Abril de 1846.
O pai, François Ducasse, era chanceler do consulado francês, e a mãe, Jacquette-Celestine Davezac, morreu poucos meses depois do nascimento do filho.
Em 1859, François Ducasse enviou o filho para França, onde Isidore estudou em regime de internato, primeiro no Liceu Imperial de Tarbes, e mais tarde no Liceu Louis-Barthou, em Pau. Em 1867, com 21 anos, e após uma curta estadia em Montevideu, Isidore Ducasse rumou a Paris, decidido a tornar-se escritor, ofício para o qual foi contando com a mesada que o pai lhe destinava a cada mês.
Em 1868, publicou, de forma anónima e a expensas próprias, uma pequena brochura. Era o primeiro canto dos Cantos de Maldoror. No ano seguinte, esse primeiro canto figurou numa antologia onde Ducasse usou pela primeira vez o pseudónimo que perduraria para os dias de hoje — Conde de Lautréamont.
A publicação da totalidade dos seis Cantos de Maldoror aconteceria ainda no ano de 1869, pela mão do belga Albert Lacroix, editor de Zola. Porém, uma vez com o livro em mãos, o editor arrepiou caminho e recusou-se a distribui-lo, receando acusações de blasfémia e obscenidade. Não era receio menor, já que tudo nestes Cantos foge ao convencional — desde logo pela temática em torno do mal, concentrada em Maldoror, personagem transgressiva, violenta, de uma perversidade extrema, até à forma dos versos, que são na verdade longos parágrafos torrenciais, a que acresce um narrador que é por vezes o personagem principal e noutras um mero observador que se conserva a distância segura —, numa história de ritmo frenético, rodeada de escuridão e estranheza, mas numa escrita de enorme vivacidade e especialmente crítica do homem.
Enquanto Ducasse se desdobrava em contactos para ver o livro distribuído, apelando a críticos, outros editores e escritores de renome, dedicou-se a outra obra onde pretenderia fazer o contraponto com os Cantos de Maldoror para desta feita cantar o bom e o belo, numa espécie de triunfo da lucidez sobre o universo negro e confuso de Maldoror, formando ambas as obras uma dicotomia sobre o bem e o mal. Esta segunda obra — Poesias. Prefácio a um livro futuro — ficaria por terminar, embora este primeiro esboço tenha sido publicado, em 1870.
Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, figura misteriosa de que pouco se conhece, morreu a 24 de Novembro de 1870, num quarto de hotel, em Paris, de causas desconhecidas.
Em 1879, a primeira edição dos Cantos de Maldoror foi finalmente comercializada. A repercussão da obra revelou-se modesta, embora relevante o suficiente para ser reimpressa em 1890. Seriam precisos mais uns anos para, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, uma cópia do livro ir parar às mãos de Phillipe Soupault, que por sua vez o mostrou a André Breton. Estava aberto o caminho para o Surrealismo.»
Na nossa livraria—metade refúgio de leitores oblíquos, metade antecâmara da galeria—esta nova edição de 2025 dos Cantos de Maldoror (Maldoror) chega como quem acende um fósforo num depósito de solventes. O livro de Lautréamont (Isidore Ducasse, 1846–1870) é um dos acontecimentos subterrâneos da literatura moderna: seis cantos em prosa que viram do avesso a moral e a gramática do belo, arrastando para a página a violência do sonho, o erotismo mineral, a crueldade quase zoológica e uma imaginação de laboratório. Mais do que antecipar vanguardas, ele fornece-lhes o motor: os surrealistas reconheceram nele a potência do “encontro insólito”, os dadaístas a blasfémia metódica, e as artes visuais encontraram um léxico de colisões (bisturis, guarda-chuvas, máquinas de costura) que ainda hoje alimenta colagens, performance e instalação. Ler Maldoror ao lado de uma exposição de fotografia ou de uma máquina de risografia a trabalhar é perceber como a literatura pode contaminar a matéria—papel, tinta, corpo—com uma eletricidade inquieta.
Esta edição tem ainda um detalhe precioso: é acompanhada por uma série de desenhos de René Magritte, que prolongam visualmente a lógica do choque e da metamorfose. As figuras de Magritte—sempre suspensas entre o banal e o impossível—encontram no texto de Lautréamont o seu correlato verbal: juntos criam um atlas de imagens onde o absurdo se torna método e o insólito, verdade.
Alguns pormenores do autor ajudam a compreender este curto-circuito. Nascido em Montevidéu e educado em francês, Ducasse adota o título de Conde de Lautréamont (provável eco de um romance de Eugène Sue) para assinar um livro que o seu editor da época hesitou em distribuir, temendo escândalo. Morre aos 24 anos, em Paris, durante o cerco de 1870, deixando este cometa e as Poésies, onde afirma, com rigor perverso, que “o plágio é necessário” porque o progresso reescreve tudo—um gesto de apropriação que a arte contemporânea reconhece como seu. Entre esses dois polos—o épico maligno de Maldoror e a desmontagem moral das Poésies—faz-se a ponte para Artaud, Bataille, Debord, Dalí ou Max Ernst, e chega-se, sem esforço, às práticas atuais de remix, sampling e sabotagem simbólica.
É por isso que esta edição portuguesa—nascida de uma editora que assume o próprio nome Maldoror—tem relevância particular numa livraria ligada a uma galeria: o livro funciona como catálogo fantasma das nossas obsessões. Aqui encontram-se as figuras que a arte não cessa de reencontrar: o corpo metamórfico, o animal ferido, o mar como laboratório de monstros, a linguagem esticada até romper. Para leitores e artistas, Cantos de Maldoror não é apenas um clássico “importante”; é uma ferramenta de risco. Reabre a ferida por onde entra o real—e lembra que, para criar, é preciso, às vezes, morder.




