EXCERTO PT
«O presente conjunto de desenhos coloca-nos perante um projecto autoral que define um imenso território cujo horizonte envia muito além da sua própria dimensão: ao mesmo tempo que nos dá especificamente a ver e a conhecer o volumoso corpo de trabalho em desenho de um artista maior do panorama contemporâneo, enuncia também exemplar e genericamente, a importância e a centralidade que o desenho ocupa na génese do pensamento artístico.
O desenho atravessa de forma consistente e quase permanente todo o percurso artístico de Fernando Calhau (1948-2002), constituindo-se como um campo autónomo de pesquisa experimental, oficinal e formal.
À imagem de outros artistas da sua geração, Calhau desenvolveu em torno da prática do desenho um trabalho constante, programático e problematizante: averiguando os seus limites, as suas possibilidades, as suas idiossincrasias.
O desenho é uma disciplina que tem um estatuto diverso de outras disciplinas artísticas, como por exemplo a pintura, a escultura ou a fotografia. É, pela sua natureza simultaneamente íntima e imediata, transversal a todos os outros campos. Propõe tempos e modos muito diversos, surpreendendo e desarmando o espectador, aquele que olha, aquela que se interroga, e não raras vezes transportando-o para um entusiasmante jogo de espírito e de decifração. Por outras palavras, o desenho é o território onde se desvela a condição propriamente originária e inquiridora da arte, de dar a ver e a pensar materialmente pelo gesto que se faz imagem.
Como acontece com muitos artistas contemporâneos, podemos dividir a produção de Calhau nesta área em dois grupos: os desenhos claramente autónomos, com especificidade própria, e os desenhos subsidiários de outras linguagens, o desenho enquanto esboço ou projecto. Contudo, a produção em desenho tem, no conjunto da obra do artista, um corpo suficientemente extenso e cobre um léxico formal e conceptual de tal forma alargado que o devemos considerar como um campo à parte.
Organizada em diversos núcleos que foram reunidos de forma diversa – obedecendo a uma lógica própria do trabalho de Calhau de organização em séries e propondo conexões temáticas – a exposição Fernando Calhau, Desenho 1965-2002 integrou trabalhos realizados a partir das mais diversas técnicas e materiais (carvão, grafite, lápis de cor e serigrafia, tinta permanente, entre outros) que se inscrevem num amplo leque de tipologias.
Revelando, enfim, na sua total extensão a complexidade do pensamento gráfico de Calhau, propõe uma constante oscilação: entre a permanência do negro e o surgimento da cor, entre as grandes superfícies e a pequena escala, entre o rigor da execução e a liberdade da mão, entre a introspecção e a ironia, entre a imagem e a linguagem.»
EXCERPT EN
This collection of drawings presents us with an authorial project that defines an immense territory whose horizon extends far beyond its own dimension: while specifically allowing us to see and understand the voluminous body of work in drawing of a major artist of the contemporary panorama, it also enunciates exemplarily and generically the importance and centrality that drawing occupies in the genesis of artistic thought.
Drawing consistently and almost permanently permeates Fernando Calhau’s (1948-2002) entire artistic trajectory, constituting itself as an autonomous field of experimental, workshop, and formal research.
Like other artists of his generation, Calhau developed around the practice of drawing a constant, programmatic, and questioning work: investigating its limits, its possibilities, its idiosyncrasies.
Drawing is a discipline that has a different status from other artistic disciplines, such as painting, sculpture, or photography. It is, by its simultaneously intimate and immediate nature, transversal to all other fields. It proposes very different times and modes, surprising and disarming the spectator, the one who looks, the one who questions, and not infrequently transporting them to an exciting game of wit and deciphering. In other words, drawing is the territory where the properly originating and inquiring condition of art is revealed, of showing and thinking materially through the gesture that becomes an image.
As happens with many contemporary artists, we can divide Calhau’s production in this area into two groups: clearly autonomous drawings, with their own specificity, and subsidiary drawings of other languages, drawing as a sketch or project. However, the production in drawing has, in the whole of the artist’s work, a sufficiently extensive body and covers a formal and conceptual lexicon so wide that we must consider it as a field apart.
Organized into various nuclei that were brought together in diverse ways – obeying a logic inherent to Calhau’s work of organization in series and proposing thematic connections – the exhibition Fernando Calhau, Desenho 1965-2002 included works made using a wide variety of techniques and materials (charcoal, graphite, colored pencils and serigraphy, permanent ink, among others) that fit into a wide range of typologies.
Revealing, finally, in its full extent the complexity of Calhau’s graphic thought, it proposes a constant oscillation: between the permanence of black and the emergence of color, between large surfaces and small scale, between the rigor of execution and the freedom of the hand, between introspection and irony, between image and language.