«Pensas que a mesma gloriosa felicidade da fortuna, da fama e do triunfo serão teus a qualquer instante, que estás prestes a tomar o teu lugar no mundo entre grandes homens e lindas mulheres, numa vida mais afortunada e feliz do que qualquer outra que tenhas conhecido—tudo isso aí está, de alguma forma, à tua espera, e apenas a um centímetro de distância, se lhe quiseres tocar, a uma palavra só de distância de o proferires, apenas a uma parede, a uma porta, a um passo de ti, se conhecesses o lugar por onde poderias entrar.
E, de algum modo, aquela esperança antiga muda e louca desperta de novo, a de que a encontrarás—a porta por onde haverás de entrar—e de que este homem te irá dizer como. O próprio ar que respiras está repleto do pressentimento emocionante de uma sorte impossível. De novo lhe queres perguntar qual o mágico segredo que terá dado à sua vida tal poder, autoridade e conforto, e feito com que toda a luta brutal, a dor, a fealdade da vida, a fúria, a fome e a errância pareçam tão longínquas, e pensas que ele to irá dizer—oferecer-te esse segredo mágico—mas ele nada te diz. E, por fim, não tens a certeza de nada—excepto de que a tua bebida é muito boa e que o jantar te aguarda.»
Thomas Wolfe (1933), “Sem Porta: um conto sobre o Tempo e o Vagabundo”
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O centro do Mundo (emocional e por sua vez literário) de Thomas Wolfe é a casa onde em criança viveu com a família. A sua obra desloca-se, em espiral, em torno deste ponto, e por aquilo que o cerca, a cidade de Asheville, de onde nunca saiu, embora tivesse vivido em vários países desde muito jovem. Na presente edição, o centro do Mundo chama-se O rapaz perdido e Sem Porta. Em O rapaz perdido, a acção decorre em 1904, na época da Exposição Universal celebrada em Saint Louis. Grover Wolfe, o menino referido no título, tem apenas 12 anos, mas, segundo dizem aqueles que o conheceram, foi abençoado por uma sensibilidade e uma maturidade extraordinárias. Escrita pelo seu irmão mais novo, Thomas Wolfe, a novela conta, em quatro tempos, com quatro vozes distintas e bem diferenciadas, a procura pelo “rapaz perdido”.
Apesar de ter sido escrita antes de O rapaz perdido, William Faulkner considerava Sem porta: um conto sobre o tempo e o vagabundo a sua continuação natural. Também aqui aparece o irmão perdido, apesar de serem outros os verdadeiros protagonistas da novela: o pai morto e a casa de família; os rudes condutores que atravessam os Estados Unidos da América de noite com os camiões carregados de mercadoria; um milionário entediado com a sua cómoda vida; os esplêndidos e singulares estudantes de uma universidade inglesa; e um misterioso personagem que, imutável, observa todos os dias o mundo através de uma janela. Contudo, o verdadeiro protagonista destas páginas extraordinárias é o seu narrador, um Thomas Wolfe que, como ele mesmo confessaria, derramou nelas todo o seu entusiasmo, toda a sua confusão, e todos os seus temores juvenis (sem saber que morreria pouco tempo depois, e ainda jovem). Outubro de 1931, de 1923, de 1926, o mês de Abril de 1928: uma viagem pelo tempo através das estações do ano, pela natureza do país, e por quatro momentos essenciais da vida do autor.
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Thomas Wolfe deixou-se envolver, irremediavelmente, numa insistente encruzilhada com a sua biografia. Passados sobretudo na sua cidade natal, Asheville, na Carolina do Norte, os seus livros perseguem episódios repletos de vida, de oralidade, de trejeitos locais, bem como as suas respectivas peculiaridades morais, sociais, tradicionais, fonéticas (com todos os seus tiques involuntários), para reflectir sobre a América rural, profundamente provinciana (até ali ignorada pela maior parte da dita grande literatura Americana), embora filtrados por uma perspectiva sensível.
Escritor compulsivo, em vida publica dois romances de grande fôlego, Look Homeward, Angel (1929) e Of Time and the River (1935). Estes dois trabalhos, de dimensões colossais, tiveram a intervenção de Maxwell Perkins, o seu editor de então, que, com o consentimento de Wolfe, realiza cortes nos manuscritos, eliminando inclusive capítulos inteiros, até se tornarem fisicamente vendíveis. Após a morte de Wolfe, foram encontradas, num baú, milhares de páginas. Daí são extraídos dois romances, novamente organizados e pesadamente cortados, desta feita pelo editor Edward Aswell. Perante a fama de Wolfe na altura, rapidamente são publicados com os títulos The Web and the Rock (1939) e You Can’t Go Home Again (1940). Para além destes dois romances, e igualmente postumamente, foram publicadas dezenas de novelas, contos e peças de teatro.