«Estas cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas, que abrangem o longo período que vai de 07-08-1941 a 13-12-1975, pouco ou nada têm que ver com o género ou subgénero literário chamado “epistolografia”. Itinerário ou roteiro dalgumas das estações principais duma singular viagem interior, sim; confissões do lado de lá da barricada, também; e ainda mais: mão cheia de reflexões, iluminações, relâmpagos, faíscas que nos falam do amor consumado e fugidio e dos sucessivos objectos do desejo (com ou sem nomes dos parceiros ou destinatários), da poesia, de penas (capitais) e de prestidigitações (de manual); projectos de publicações e exposições no Reino da Dinamarca e noutras terras — franças, holandas, inglaterras… —, para conquistar e onde semear os sonhos e os incêndios; quadros e estórias da história da intervenção surrealista em Portugal e dalguns dos seus protagonistas; intersecções de bildungsroman e künstlerroman, cachoeiras líricas e charcos dramáticos que nunca chegaram a lagoas e acabaram travestidos também de artefactos poéticos; cantigas de amigo e de escárnio e maldizer (em prosa, naturalmente, como anunciava Nicolau Cansado Escritor); via sacra e feira popular, Mário no desenvolver-se e no despir-se do seu eu mais profundo e mais seu em diálogo com quem foi sempre — mesmo quando passaram a espreitar-se de longe — o seu eu mais próximo, Artur Manuel do Cruzeiro Seixas (camarada e amigo; depois aquele a quem Mário “toma os olhos e as mãos e […] beija devagarinho”), os dois às vezes fundidos e até confundidos num espaço onde brincavam amor e admiração; fragmentos, enfim, do plano do tesouro da geografia afectiva de Mário Cesariny.» [Perfecto E. Cuadrado]
«Queridíssimo Artur Manuel: A tua carta! A tua carta! A tua carta! Eu estava já assustado com o teu silêncio! Desculpa se te pareço ilógico: é que o meu silêncio para contigo, que mais de uma vez referiste magoadamente, perdoa, não é um silêncio, penso em ti todos os dias dos meses com muito amor, muita admiração e muito desespero, ou, se é silêncio, é, perdoa outra vez, parecer-te-á ridículo, um silêncio de trabalho, como se disse “chá de trabalho” quando as perspectivas terráqueas são o estoiro atómico e as personagens, ultrapassadas pelos acontecimentos, dão o resto, isto é, a hora do chá, que era para cruzar a perna e olhar pela janela. Nem perna, nem janela, nem nada. Nem silêncio. Sei que te devo, devemos, graves obrigações. Ou, se te parece pesado dito dessa maneira: que me impus duas ou três importantes tarefas, em relação a ti: uma, os teus poemas escritos; outra, o teu mundo infinito de desenhos, de pinturas, de objectos — o teu amor; outra — tudo isso e tu próprio — talvez o único de todos a quem pode chamar-se sem restrições O POETA. Outra: as tuas cartas! As cartas do rei Artur!» [Mário Cesariny, 12-03-1963]